Desde que Caim matou Abel, conforme lemos em Gnesis 4, o mundo tem sido afligido por conflitos, guerras e violncia. Hoje vemos de tudo, desde desavenas pessoais e conflitos sociais at agitaes polticas e guerras regionais. Qual o nosso papel, como seguidores de Cristo, e o que significa ser uma igreja missionria em um contexto de violncia e guerra?
Esse um dilema dirio das igrejas no leste da Repblica Democrtica do Congo (RDC), as quais podem nos oferecer informaes valiosas sobre a contextualizao da obra missionria por igrejas e lderes locais durante as recentes guerras naquela regio. Embora a obra missionria no Congo enfrente muitos desafios, h esperana na experincia da igreja e das organizaes missionrias locais que conduzem a obra de Deus em um contexto de guerra, violncia, migrao e conflito.[1]
As principais causas da guerra no leste da Repblica Democrtica do Congo (RDC) foram assim identificadas: a crise de identidade tnica, a agenda poltica dos senhores da guerra e o apoio que recebem de outros pases, e o interesse das multinacionais na explorao da riqueza mineral congolesa.[2] A guerra em curso tem exposto as comunidades a deslocamentos internos, migrao, estupros, escassez de alimentos, pobreza e fome, entre outros desafios. A RDC reconhecida como ?a capital mundial do estupro?, porque ?enquanto o pas estava preso em conflitos, o uso do estupro como arma de guerra era desenfreado e inexorvel? a ponto de ?mais de 200 mil estupros terem sido relatados desde o incio da guerra? at o ano de 2012.[3]
A GUERRA EM CURSO TEM EXPOSTO AS COMUNIDADES A DESLOCAMENTOS INTERNOS, MIGRAO, ESTUPROS, ESCASSEZ DE ALIMENTOS, POBREZA E FOME, ENTRE OUTROS DESAFIOS.
Ao longo do ltimo sculo, o avano do cristianismo na RDC foi evidente. David Barrett mostra que, em 1909, os cristos na RDC constituam 1,4% da populao total do pas.[4] Esse nmero aumentou para 90,3% em meados da dcada de 1970, e para 97,0% no ano 2000. Curiosamente, o crescimento mais acelerado ocorreu durante as duas ltimas dcadas do sculo 20, que abrange o perodo da revolta civil na dcada de 1980 e a primeira dcada de guerra no leste do Congo, na dcada de 1990. A deteriorao da situao econmica provocou tumultos no incio dos anos 1990 e levou retirada da equipe de missionrios transculturais em algumas partes do pas, incluindo o leste do Congo. Mesmo assim, a igreja congolesa permaneceu ativa.
Andrew Scott Moreau e seus colegas afirmam que, mesmo aps a sada desses missionrios, ?a vitalidade da igreja [congolesa] a coloca entre as 10 principais naes no ocidentais que enviam seus prprios missionrios para o ministrio transcultural tanto dentro de suas fronteiras quanto alm delas?. Em Oxford, Reino Unido, numa reunio com missionrios que haviam atuado na Repblica Democrtica do Congo, algum afirmou: ?As organizaes missionrias ocidentais parecem menos interessadas no Congo por causa da guerra e por ser um pas de lngua francesa?. Moreau respondeu: ?Mas isso deve ser visto como um chamado para que os cristos no Congo se unam a Deus na obra missionria mundial?. Nossos coraes e mentes devem se submeter soberania de Deus mesmo nas situaes mais difceis, identificando oportunidades para o evangelho onde o mundo v apenas conflito.
Se o pecado produz egosmo, ira e dio, ento o conflito inevitvel quando os pecadores colocam seus interesses acima do bem-estar de outros. No h sinais de que a guerra terminar em breve na RDC, ou em qualquer outra parte do mundo. Jesus disse que haver conflitos e guerras at que ele volte (Mc 13.7-8). Qual deve ser nossa resposta, como seguidores de Cristo que vivem em um mundo em conflito? Humanamente falando, muitas vezes pensamos que o conflito necessariamente faz com que nossos ministrios sejam pausados. Podemos abrir mo de estratgias, mas jamais podemos deixar de servir. Deus nunca para de trabalhar, por isso, ns, seu corpo, tambm no devemos parar.
NOSSOS CORAES E MENTES DEVEM SE SUBMETER SOBERANIA DE DEUS MESMO NAS SITUAES MAIS DIFCEIS, IDENTIFICANDO OPORTUNIDADES PARA O EVANGELHO ONDE O MUNDO V APENAS CONFLITO.
No incio da guerra na Ucrnia, por exemplo, muitas igrejas e ministrios levantaram ajuda financeira para as vtimas. Uma igreja na Romnia comeou imediatamente a abrigar os refugiados que cruzavam a fronteira. Posteriormente, a igreja comeou a enviar alimentos a outra igreja na Ucrnia. Hoje, muitas pessoas em todo o mundo tm visto e sentido o amor de Deus graas resposta sacrificial da igreja guerra na Ucrnia.
Diante da guerra, a igreja pode ficar tentada a se afastar da misso. Se a igreja no consegue perceber que o evangelho pode trazer paz aos contextos mais difceis, confinar o evangelho ao plpito, deixando de descobrir o discipulado contextual que lida com o crescimento espiritual, a esperana e as preocupaes sociais, incluindo a pobreza e a coexistncia pacfica.[5] Como crentes no evangelho, sabemos que onde aumenta o pecado e o caos, tambm h oportunidades para a graa e o amor de Deus. Jesus disse: ?Faam aos outros o que vocs querem que eles lhes faam? (Mt 7.12, NVI) e ?Ame o seu prximo como a si mesmo? (Mc 12.31, NVI). A resposta da igreja guerra, portanto, requer ao fundamentada pela teologia, tanto no ministrio quanto na obra missionria. A igreja agiria com sabedoria se refletisse de forma proativa como iniciar ministrios em contextos de guerra.[6]
Adam (pseudnimo) um enfermeiro vindo da regio do Congo devastada pela guerra para participar do curso intensivo ministrado pelo Centro de Misso e Pesquisa Intercultural em Goma, uma cidade no leste da Repblica Democrtica do Congo. Ele ficou surpreso ao descobrir o nvel de perdio do mundo e decidiu ser parte da obra missionria divina de resgate. Como parte de seu estgio, ele decidiu mobilizar e capacitar cinco igrejas de sua cidade natal.
Enquanto estava no plpito, com a Bblia nas mos, Adam foi sequestrado por ex-rebeldes ruandeses, que o levaram para as selvas do Congo. Na viagem rumo ao interior da selva, Adam se ofereceu para socorrer um rebelde que havia sido atingido por uma bala no peito durante o ataque. Ele conseguiu extrair a bala e estancar o sangramento. Chegando ao local de destino, Adam pediu a seus companheiros refns que se unissem a ele em orao de gratido a Deus pelas misericrdias durante a viagem e pedir-lhe que perdoasse seus sequestradores.[7] Durante seu cativeiro, ele testemunhou como civis inocentes eram massacrados ou sofriam violncia sexual e escravido. Como pensava que seria morto, decidiu compartilhar o amor de Deus com o lder dos rebeldes: ?Deus ama voc e pode perdo-lo se voc se arrepender do seu pecado. Voc est permitindo o assassinato de pessoas inocentes, retribuindo com maldade o bem que recebeu do povo congols, que o acolheu. Se no se arrepender, Deus o punir com a condenao eterna. Aceite Jesus como seu Salvador. Ele ama voc e est pronto para perdo-lo. Ele morreu por voc na cruz do Calvrio?.
O lder dos rebeldes ficou comovido, mas decidiu testar Adam. Cerca de 30 refns foram trazidos, homens e mulheres cujas famlias no haviam enviado o resgate por sua liberdade. O teste consistia em Adam escolher salvar sua vida ou a dos refns ? algum teria de morrer. Ele respondeu: ?Prefiro ser o nico a ser morto. Depois que voc me matar, vou direto para o cu, mas esses homens e mulheres tm filhos que precisam muito deles, e algumas de suas famlias ainda esto lamentando por eles. Por favor, liberte-os?. Um rebelde, ento, exclamou: ?Pela primeira vez na minha vida, eu vi Jesus face a face?. Os refns foram libertos e instrudos a retornar ao seu povo e contar que Jesus lhes havia aparecido na selva e decidido morrer em seu lugar.
Isso deu a Adam a grande oportunidade de compartilhar o amor de Deus em trs acampamentos rebeldes, e 63 desses rebeldes, alm de seu lder, aceitaram Jesus. Em visita a nove acampamentos rebeldes sob seu comando, esse lder, em lgrimas, introduzia os sermes de Adam, dizendo: ?Venha e oua o que nenhum homem que esteve nesta selva jamais me disse nos ltimos vinte anos?.
Adam foi liberto junto com seus dois colegas. Aps sua libertao, voltou para casa e, alguns meses depois, o lder dos rebeldes decidiu, junto com outros 10 rebeldes, entregar suas armas em obedincia mensagem do evangelho. Eles se apresentaram fora de manuteno da paz da ONU mais prxima, que os levou de volta ao seu pas. Mais tarde, o exrcito da RDC conseguiu desmantelar aquele mesmo acampamento onde Adam ficara cativo. Hoje, Adam est envolvido no discipulado de rebeldes e milicianos sempre que tem oportunidade, pois serve como enfermeiro-chefe.
A histria de Adam demonstra o poder e o impacto potencial do evangelho a despeito do sofrimento. Revela que o evangelho pode cessar conflitos, encerrando a guerra que travamos contra Deus em nossos coraes. Somente quando os seres humanos so curados por meio de um encontro com o amor de Deus que podem abandonar suas armas e tomar a cruz do amor em seu lugar.
A necessidade de fazer discpulos em zonas de conflito persistir. Sempre que h guerra e caos, as pessoas se sentem desorientadas. Como reao, os cristos no leste do Congo muitas vezes retornam s crenas tradicionais e feitiaria como um modo de lutar contra a agresso. Outros, como os refugiados em grandes cidades, se voltam para as falsas esperanas do evangelho da prosperidade.
Abordar essas dinmicas requer um discipulado contextualizado e movido pela orao. Embora no haja uma soluo nica para nossa resposta ao conflito, sabemos que a Grande Comisso chama a igreja para fazer discpulos de todas as naes, ensinando-os a obedecer aos mandamentos do Senhor. Isso significa que a igreja pode responder a qualquer situao, em tempos de paz ou de conflito, usando sabiamente as Escrituras como fundamento para moldar discpulos que sejam semelhantes a Cristo.
Um bom exemplo o Osis de Esperana (Oasis of Hope), um programa na RDC criado para capacitar indivduos para darem um testemunho como o de Adam. Esse programa prepara lderes cristos que sofreram perseguio a retornar ao seu povo como testemunhas proativas de Cristo e a servir aos civis que passaram por estupro e violncia.[8] A cura desses lderes traumatizados vem atravs das Escrituras e da terapia, que os ajudou a integrar sua experincia a uma cosmoviso bblica e a se reconciliar com aqueles que os perseguem, restaurando o shalom ao seu mundo corrompido.
Finalmente, essencial examinar o que o apstolo Paulo lembra igreja em feso: ?Nossa luta no contra pessoas? (Ef 6.12, NVI). Esse princpio muda radicalmente nossa abordagem e a forma como ministramos em meio aos conflitos. Lembre-se de que o prprio Paulo, que escreve isso, havia sido hostil e violento contra a igreja. Ministrio e salvao so obras de Deus somente. Ns, portanto, no lutamos contra pessoas. Em vez disso, abordamos essas situaes com humildade e dependncia de Deus visando ajudar a salvar pessoas, at mesmo as mais violentas que talvez nos estejam perseguindo.
Autores do Artigo:
Eraston Kambale Kighoma o diretor executivo do Centro de Misses Interculturais e Pesquisa e atua como coordenador da Rede Temtica Lausanne de Cuidados da Criao na Repblica Democrtica do Congo. professor de estudos missionrios e interculturais em vrios seminrios e universidades. Escreveu Church and Mission in the Context of War: A Descriptive Missiological Study of the Response of the Baptist Church in Central Africa (CBCA) to the War in Eastern Congo between 1990 and 2011, pelo qual recebeu, em 2022, o primeiro Prmio de Pesquisa em Teologia Intercultural pela Associao Alem de Estudos Missionrios.
CJ Davison o diretor internacional da Leadership International, que, por meio de treinamento e recursos, capacita lderes semelhantes a Cristo para a obra missionria de Deus. Residindo no Reino Unido com sua esposa e trs filhos, ele tem um ministrio itinerante de ensino, alm de se dedicar escrita e ao levantamento de recursos para programas de treinamento de liderana bblica administrados localmente. Atua tambm na iniciativa YLGen do Movimento de Lausanne e o autor de Missional Friendships: Jesus? Design for Fruitful Life and Ministry.
Fonte: Lausane